Deepfake é uma nova modalidade de fake news (desinformação) criada a partir da deep learning (categoria de inteligência artificial), que manipula conteúdo audiovisual a partir da inserção de imagens e/ou voz de um indivíduo que não integra a obra original[1], com a explícita finalidade de gerar distorções na realidade, tendo em vista que, embora seja verossímil, o conteúdo da deepfake é falso e pode ser relevante ao interesse público[2].

O seu uso tem sido bastante vasto e a técnica deepfake tem se tornado cada vez mais comum na nossa sociedade em rede[3], lastreada também pelo compartilhamento desenfreado de informações sem verificação de autenticidade e o tratamento massivo de dados pessoais, com repercussões éticas e sociais[4]. Deste modo, faz-se necessário analisar, ainda que brevemente, a legalidade das deepfakes à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018) e da tutela dos direitos da personalidade, especialmente os artigos 17 e 20 do Código Civil (Lei n.10.406/02).

O cerne da prática pode ser identificado como ambivalente, no que tange à manipulação dos direitos da personalidade, com ênfase nas relações do direito à imagem-retrato e imagem-atributo; e, por outro lado, nas questões relativas à proteção de dados pessoais sensíveis como voz e imagem em fotografia, tendo as questões autorais e criminais de ser analisadas à parte.    É daí que, especificamente às deepfakes, poder-se-ia sustentar, a priori, a sua legalidade, posto que esta atividade manipulativa das expressões dos direitos da personalidade na perspectiva da imagem-retrato e imagem-atributo subsumir-se-ia à disponibilidade relativa de tais direitos[5]. Assim, sustentamos que, como relativamente intransmissíveis e irrenunciáveis que são, o uso e a manipulação por outrem dos direitos de personalidade de alguém em deepfakes pode ser feito, desde que ocorra autorização prévia e inexista finalidade ilícita ao conteúdo falso a ser criado.

É de se observar que esta autorização prévia será relativizada apenas nas hipóteses de tratar-se de expressões de direitos de personalidade de pessoas públicas – dada a mitigação que estes possuem no que tange à reprodução dos seus direitos de imagem. Porém, em qualquer caso, seria defesa a prática de deepfakes com finalidade única ou eminentemente comercial, seja de pessoas físicas públicas ou não, unicamente sendo esta possível se possuir um viés sarcástico-humorístico e sem fim danoso. Sob a ótica da tutela dos direitos da personalidade, o artigo 20[6] do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) prevê que, a requerimento do interessado, poderá ser proibida qualquer exposição ou utilização indevida da imagem de indivíduo, em clara reverberação da inviolabilidade do direito à imagem, conforme previsto no artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988. Aliado a isso, o artigo 17 do Código Civil dispõe que o nome da pessoa não pode ser empregado em representações que o exponham ao desprezo público, de modo que a legalidade da deepfake está sujeita a essas condições essenciais.

No que tange à proteção dos dados sensíveis como imagem e voz, o artigo 2º, IV, da Lei Geral de Proteção de Dados reforça a tutela constitucional de inviolabilidade dos direitos à honra e à imagem sob a ótica da proteção de dados, de modo que a elaboração de deepfake deverá ser procedida em consonância com esses baluartes para o processamento e reprodução de dados pessoais sensíveis de imagem pessoal e voz.

Dito de outro modo, sob o viés da Lei Geral de Proteção de Dados, o tratamento de imagem e voz para a criação de deepfake somente poderá ocorrer de acordo com uma das hipóteses previstas no artigo 7º, tais como, com o consentimento do indivíduo titular do dado, para o cumprimento de obrigação legal, para a proteção da vida etc.

Diante desse contexto, apresentamos alguns dos requisitos essenciais à legalidade das deepfakes nos âmbitos dos direitos da personalidade e da proteção de dados do indivíduo, titular dos dados pessoais sensíveis expostos nessa obra distorcida. Deste modo, caso não haja o atendimento aos critérios acima expostos, poder-se-á incorrer em elaboração de deepfake ilegal, em nítida violação dos direitos do indivíduo exposto.

 

[1] AFFONSO, Carlos. Tecnologia abre novo capítulo na manipulação de vídeos; imagina na eleição. 2019. Disponível em: <https://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2019/05/28/tecnologia-abre-novo-capitulo-na-manipulacao-de-videos-imagina-na-eleicao/>. Acesso em: 20 set. 2019.

[2] MARAS, Marie-Helen; Alex Alexandrou. Determining authenticity of video evidence in the age

of artificial intelligence and in the wake of Deepfake vídeos. In: The International Journal of Evidence and Proof, Thousand Oaks, v. 30, out, 2018, p. 1-8; FLORIDI, Luciano. Artificial Intelligence, Deepfakes and a Future of Ectypes. In: Journal Philosophy & Technology, v. 31, set., 2018, p. 317-231

[3] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento à política. A sociedade em rede. Do conhecimento à acção política. Debates–Presidência da República. Lisboa: Imprensa Nacional, 2005, p. 17-30.

[4] HWANG, Tim. A vote against deepfakes. In: Journal New Scientist, Londres, v. 239, 11 de ago, 2018, p. 22-23; Jury Tech. Deepfakes, social media, and celebrities: a technology for the combination of fake and deep learning used for swapping faces of people in a video. Chino Hills: Gilob Publishing House, 2018, p. 3 e ss.

[5] CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, passim; COLOMBO, Cristiano; Facchini Neto, Eugênio. Violação dos direitos de personalidade no meio ambiente digital: a influência da jurisprudência europeia na fixação da jurisdição/competência dos tribunais brasileiros. In: Civilistica.com: Revista Eletrônica De Direito Civil, vol. 8(1), 2019, p. 1-25; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: Teoria Geral. 3. ed. Rio da Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 105 e ss.

[6] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais (grifos nossos).