1. Generalidades

O ininterrupto avanço tecnológico reflectido na cada vez mais crescente – e inevitável – utilização de meios informáticos e/ou Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) para a realização das mais variadas acções dentro dos inumerosos quadrantes da esfera jurídica das pessoas (psicofísicas e colectivas) arrasta consigo a necessidade de se regula(menta)rem os actos que se sucedem e as relações que se estabelecem naquele meio informático/tecnológico – o meio digital.

Não constitui algum absurdo assumir convictamente que, hodiernamente, o meio digital é o palco privilegiado para onde estão a emigrar as tradicionais actuações e comportamentos dos Homens, sendo escancaradamente nítido que situações que, preteritamente, requeriam a presença física dos sujeitos para que essas mesmas situações se concretizassem, foram substituídas por Aplicativos (Apps) ou ferramentas digitais: celebração de contratos – Email –, realização de reunião – Skype –, entabulamento de conversa – Messenger –, compra de álbum – iTunes –, exercício do direito a liberdade de pensamento e de expressão – Blogs –, perpetração de crimes – Whatsapp (cibercrime) –, protecção/armazenamento de dados pessoais e profissionais – Google Drive, iCloud, Dropbox – transferência de dados – AirDrop – manifestação da personalidade dos indivíduos – Facebook – ou do respectivo perfil profissional – LinkedIn – e aquisição de bens – compras on-line, e-Books.

As relações intersubjectivas no mundo digital, por serem susceptíveis de gerar obrigações para os respectivos intervenientes, faz consequentemente emergir a responsabilidade dos mesmos nos casos em que lesem direitos e interesses de terceiros, advindo, daí, a pertinência de se regular aquelas relações.

Evoluiu o mundo; evoluiu o Direito. É neste contexto que surge uma nova ramificação jurídica denominada Direito Digital, que pode ser definida como sendo o complexo de normas, aplicações, conhecimentos e regulação das relações jurídicas realizadas no meio digital, destinado a estabelecer as “regras de jogo” em torno das quais ir-se-ão subordinar todas as relações que se sucedem no ambiente on-line, visando que as mesmas ocorram em harmonia e obediência ao Direito, evitando-se, assim, a deflagração de conflitos de interesses.

Vistas bem as coisas, o Direito Digital surge da necessidade que o próprio Direito “sentiu” de acompanhar a evolução das TIC’s, presciente que, dessa evolução, e tendo em conta o carácter sofisticado das TIC’s, ocasionam-se problemas peculiares que reclamam também por soluções peculiares, diferentes daquelas [soluções] encontráveis no mundo real [em oposição ao mundo virtual].

O Direito Digital possui como finalidade tutelar as relações que se desencadeiam entre as pessoas (singulares/colectivas) em ambientes digitais, através do uso das TIC’s. O ambiente digital, tal como o ambiente “real”, é também caracterizado por comportamentos, acções, omissões, cuja susceptibilidade de se estraçalharem direitos de terceiros é verosímil, o que, por si só, justifica a adopção, por parte dos Estados, de mecanismos sofisticados destinados a estabelecer regras e princípios que orientem as regras de conduta nesse ambiente.

Entretanto, o Direito Digital não corresponde a um critério de classificação/divisão tradicional dos ramos do Direito. Enquanto, à luz das tradicionais qualificações dos ramos do Direito, os aludidos ramos eram autonomizados em função da matéria específica que visassem regular (Direito Civil regula as relações jurídicas entre entes privados; Direito do Trabalho regula as relações nas quais uma pessoa – o trabalhador – presta uma actividade sob direcção e autoridade doutrem – o empregador –, em regime de subordinação e mediante remuneração; Direito Comercial regula os actos de comércio e o decorrentes das sociedades comerciais), o Direito Digital possui uma natureza heteróclita e, indo mais longe, multidisciplinar, excursionando-se em [quase] todas as áreas tradicionalmente consagradas como ramos autónomos do Direito.

Tendo em conta a heterogeneidade das relações e comportamentos que se originam e se desenvolvem no mundo digital (redes sociais, as mais variadíssimas “Apps” e as especificidades dos circuitos e labirintos que radicam do fenómeno tecnológico e do manuseamento da internet), o conjunto de normas que corpora o Direito Digital atravessa todas as outras áreas do saber jurídico, desde que avulte um elemento de conexão com o mundo tecnológico/digital.

O perímetro de abrangência do Direito Digital é, pode-se assim dizer, “ilimitado”, pois as TIC’s estão em irreversível evolução, as redes sociais transformaram-se num centro difusor de “lifestyle” e as Apps exercem uma influência extremamente viciante em todos os segmentos das vidas das pessoas, quer psicofísicas quer colectivas, sendo que estas últimas investem estrondosas somas pecuniárias no marketing digital.

Moçambique, como não deveria deixar de ser, não ficou alheio a este fenómeno. É indesmentivelmente notória, no nosso solo pátrio, a preocupação, por parte do legislador, de aprovação de diplomas legais contendo normas que incidem sobre as relações, comportamentos e acções cujo palco é o ambiente digital.

A título meramente exemplificativo, abaixo elencam-se algumas das principais áreas de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana, ressalvando-se, desde já, que a aprovação da Lei de Transacções Electrónicas[1] e da Política para a Sociedade da Informação[2], em virtude da transversalidade das suas normas, traduzem-se nos dois respaldos basilares nos quais se ancora a interpenetração do Direito Digital nas demais áreas do Direito moçambicano:

 

  1. Direito Penal e Direito Processual Penal

É mundialmente assente que foi a sofisticação tecnológica dos meios de cometimento de crimes, que mais impulsionaram o surgimento do Direito Digital. Os delinquentes mais arrojados viram nas TIC’s, e expedientes equiparáveis, um mecanismo de ludibriar os sistemas de prevenção e repressão criminal, principiando com a proliferação de práticas delituosas, as quais encontraram muitos Ordenamentos em contrapé, como se de emboscada se tratasse, não se lhes dando a mínima hipótese de se defenderem dos surpreendentes meios sofisticados manuseados por aqueles criminosos.

Como forma de dar resposta adequada a essa nova realidade, o novíssimo Código Penal (CP) – aprovado pela Lei n.º 24/2019 – traz figuras como os crimes de “devassa da vida privada” (art. 252), “base de dados automatizada” (art. 254), “gravações ilícitas” (art. 257), “burla informática e nas comunicações” (art. 289), “fraudes relativas aos instrumentos e canais de pagamento electrónico” (art. 294); chama-se também à colação determinadas formas de cometimento dos crimes de “difamação” (art. 233) e “injúria” (art. 234), na parte em que a Lei refere-se a «qualquer outro meio de publicação»; a secção do CP respeitante à “falsidade informática e crimes conexos”, nos quais se incluem os crimes de “falsidade informática” (art. 336), “interferência em dados” (art. 337), “interferência em sistemas” (art. 338), “uso abusivo de dispositivos” (art. 339).

São também perscrutáveis as impressões digitais do Direito Digital[3] no novíssimo Código do Processo Penal (CPP), aprovado pela Lei n.º 25/2019, no regime consagrado para as “Escutas Telefónicas”, um meio especial de obtenção da prova, através do qual se permite a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas de suspeitos (art. 222 do CPP), extensível às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente telemóvel, correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (art. 225 CPP).

 

  1. Direito Civil e Direito Processual Civil

A revisão do Código de Processo Civil (CPC) ocorrida em 2009 e que culminou com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 1/2009, cujas normas foram objecto de incorporação no CPC, trouxe a possibilidade de as reproduções cinematográficas e fonográficas poderem servir como meios de prova [documental] e, como tal, funcionando como ferramenta fulcral à merce do juiz na sua nobre função julgadora.

Com efeito, preceitua o n.º 1 do art. 527 CPC que «à parte que apresente como prova qualquer reprodução cinematográfica ou registo fonográfico incumbe, sob pena de o documento não ser atendido, facultar ao tribunal os meios técnicos de exibir, sempre que necessário».

Tanto a filmagem bem como a gravação telefónica radicam, na maioria dos casos, da utilização de meios informáticos e/ou TIC’s, com elevada verosimilhança de brotarem do “meio digital”, chamando-se, aqui, a atenção sobre a discutibilidade das chamadas telefónicas efectuadas com recurso ao Whatsapp ou ao Messenger poderem servir como meio de prova, na medida em que, no figurino da nossa lei processual, tais gravações, captadas sem o consentimento de um dos interlocutores, ainda que admissíveis em processo civil (art. 527 CPC), são, em algumas circunstâncias, inadmissíveis em processo penal [alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 252 e n.º 1 do art. 257, ambos do CP], configurando, por isso, prova nula (arts. 4 e 222 do CPP), merecendo realce, quanto a esta matéria, o facto de, contrariamente ao que se sucede com a possibilidade de o juiz requisitar registos/reproduções fonográficas às empresas de telefonia móvel (art. 536 CPC) para que funcionem como material probatório, as trocas de correspondência efectuadas com recurso ao Whatsapp caracterizam-se pela presença da criptografia[4], sendo, de todo, impossível que uma empresa de telefonia móvel possa ter acesso à tais correspondências.

Merece, outrossim, ênfase quanto a interpenetração do Direito Digital no Direito [Processual] Civil, o facto de a prova testemunhal poder ser apresentada através de depoimento efectuado por testemunha que entrou em contacto com a matéria sujeita à prova em virtude de o mesmo pertencer a um “grupo de Whatsapp” ou “grupo criado no Messenger”, plataformas digitais onde o facto sujeito à verificação judicial tenha ocorrido.

As transacções electrónicas, no meio digital, apresentam-se como uma das principais matrizes da responsabilidade civil – quer extracontratual (art. 483 CC) quer contratual (art. 798 CC) – nos termos da qual cabe, à quem viola direitos de outrem, obrigação de colocá-lo indemne pelos prejuízos resultantes dessa conduta, podendo assumir, por ex.:, comportamentos que violem o bom nome, imagem e reputação (responsabilidade extracontratual); ou violação de prestações – sejam de facere ou de non facere – resultantes de factos originados no meio digital ou, não tendo sido um facto nele originado, sendo nele onde se concretiza a violação (responsabilidade contratual).

 

  1. Direito do Consumidor

Sempre que as relações jurídicas de consumo (as mantidas por todas as pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, que habitualmente desenvolvem actividades de produção, fabrico, importação, construção, distribuição ou comercialização de bens ou serviços a consumidores, mediante cobrança de um preço) forem mantidas no “ambiente digital”, através dos meios de informação e/ou TIC’s, temos, em regra, estabelecida a incidência do Direito Digital no Direito do Consumidor[5].

Com efeito, a Lei de Transacções Electrónicas (LTE), que reserva um capítulo próprio destinado à protecção do consumidor, e como corolário do reconhecimento de que, apesar de algumas matérias destinadas à defesa dos interesses e direitos dos consumidores já estarem previstas na Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 22/2009) e respectivo Regulamento (Decreto n.º 26/2007), as relações jurídicas de consumo que se desencadeiam e se desenvolvem no mundo digital serem caracterizados por peculiaridades típicas desse meio, consagra que os contratos relativos ao comércio electrónico[6] celebrados entre empresas comerciais e os consumidores devem fornecer informação precisa, suficiente, clara e de acesso fácil para permitir a identificação das partes contratantes (art. 44 da LTE[7]).

Não nos esqueçamos que nos referimos a transacções electrónicas (ocorridas no mundo digital, com particular enfoque para a internet) e, como tal, é imprescindível que o consumidor tenha, à sua mercê e ao seu dispor, todos os elementos identificativos das empresas com as quais celebrará contratos conducentes a adquirir bens e/ou solicitar serviços. Este aspecto ganha relevância subida, porquanto, se esses elementos não estiverem precisa, clara, suficientemente identificados e identificáveis ou não forem de fácil acesso, o risco de ocorrência de, por exemplo, burlas e outros tipos de fraudes, é de uma verosimilhança iminente. Exemplos do que se disse atrás não faltam; muito pelo contrário, são de verificação quotidiana, quer na avultada compra de viaturas ou mesmo na aquisição de uma mera peça de roupa.

A preocupação do “legislador das relações jurídicas de consumo” moçambicano, no que tange à inter-relação entre o Direito Digital e o Direito do Consumidor, vislumbra-se, outrossim, nas normas corporizadas na Lei das Telecomunicações (Lei n.º 4/2016) – sabido que é que o domínio das telecomunicações é campo privilegiado do manuseamento das TIC’s[8].

 

  1. Protecção de Dados Pessoais

O regime jurídico que fixa a disciplina a que está sujeita a protecção de dados no ordenamento jurídico moçambicano foi introduzida por intermédio da Resolução n.º 5/2019, de 20 de Junho, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (doravante “CUACPDP”), Convenção adoptada pela 23.ª sessão ordinária da cimeira dos chefes de Estado e de Governo da União Africana, a 27 de Junho de 2014, em Malabo, Guiné Equatorial[9].

Da mesma forma que o Direito Digital surge da necessidade que o próprio Direito “sentiu” de acompanhar a evolução das TIC’s, presciente que, dessa evolução, e tendo em conta o carácter sofisticado das TIC’s, ocasionam-se problemas peculiares que reclamam também por soluções peculiares, diferentes daquelas [soluções] encontráveis no mundo real [em oposição ao mundo virtual], objectivando, como finalidade, tutelar as relações que se desencadeiam entre as pessoas em ambientes digitais, através do uso das TIC’s, a reformulação das normas relativas à protecção de dados pessoais (em ambientes digitais), foram, por impulso decisivo da União Europeia, ocasionadas devido a observância de grandes casos de vazamento de dados e utilização e comércio de informações pessoais, o que culminou, após sucessivas revisões ao longo do tempo, com a adopção da Directiva 2016/679 – General Data Protection Regulation (GDPR) –, que obrigou empresas de todo mundo – onde se incluem monstros elefantícios como o Facebook e o Google – a mudar a forma como colectam, armazenam, processam e tratam dados e foi ainda responsável pelo despoletamento de uma série de reformas legislativas sobre o tema em todo o mundo[10].

 

 

 

[1] Lei n.º 3/2017, que estabelece os princípios e o regime jurídico das transacções electrónicas em geral, do comércio e governo eletrónico em particular, visando garantir a protecção e utilização das TICs.

[2] Aprovada através da Resolução n.º 17/2018, cujo glossário define “Sociedade da Informação” como sendo «aquela em que o modo de desenvolvimento social e económico, baseia-se na informação como meio de criação de conhecimento, para a produção de riqueza e bem-estar de vida dos cidadãos. Para tal o acesso às TIC’s é condição essencial».

[3] A silhueta do Direito Digital tanto se pode fazer notar de uma forma fulgurantemente incisiva, como nalguns dos diplomas acima citados, como também de forma residual, conforme se extrai, por ex., do disposto no n.º 1 do art. 84 do novíssimo Código de Execução das Penas, aprovado pela Lei n.º 26/2019, que dilucida que «o director do estabelecimento penitenciário pode, a título excepcional, autorizar o recluso a utilizar qualquer outro meio técnico de comunicação existente no estabelecimento penitenciário, nomeadamente correio electrónico e telecópia, em situações pessoais ou profissionais particularmente relevantes ou urgentes, sendo controlado o respectivo conteúdo». O Direito Digital deambula ainda pelo controle das “transferências electrónicas” ao aconchego do art. 15 da Lei n.º 14/2013 (Lei de Branqueamento de Capitais), marca presença no art. 29 da Lei n.º 5/2018 (Regime Jurídico de Prevenção, Repressão e Combate ao Terrorismo), bem como se faz sentir notoriamente no art. 12 da Lei n.º 2/2018 (altera a Lei que cria o Gabinete de Informação Financeira de Moçambique) e constitui um dos mecanismos mais efusivos de articulação entre Moçambique e demais Estados soberanos no âmbito da troca de informação sobre detidos/suspeitos/arguidos relativamente aos quais se impõe a respectiva extradição, de Moçambique para outros Estados e vice-versa, como se ilustra no art. 23 da Lei n.º 21/2019 (aprova os Princípios e Procedimentos de Cooperação Jurídica e Judiciaria Internacional em matéria Penal) nos termos do qual, os Estados podem «utilizar na transmissão dos pedidos [de informação] os meios telemáticos adequados, desde que estejam garantidas a autenticidade e a confidencialidade do pedido e a fiabilidade dos dados transmitidos».

[4] Conceito definido no glossário da Lei de Transacções Electrónicas – aprovada sob chancela da Lei n.º 3/2017 – como sendo a disciplina que engloba princípios, meios e métodos para a transformação de dados por forma a esconder o conteúdo da sua informação, estabelecer a sua autenticidade, evitar a sua modificação não detectada, evitar o seu repudio, e/ou evitar a sua utilização não autorizada

[5] O n.º 1 do artigo 3 da Lei de Defesa do Consumidor estabelece que «a presente lei aplica-se a todas as pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, que habitualmente desenvolvem actividades de produção, fabrico, importação, construção, distribuição ou comercialização de bens ou serviços a consumidores, mediante cobrança de um preço». O n.º 2 do mesmo artigo estende o âmbito de aplicação a «organismos, fornecedoras, prestadoras e transmissoras de bens, serviços e direitos, nomeadamente, da Administração Pública, autarquias locais, empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado e empresas concessionárias de serviços públicos». Chama-se a atenção que o conceito de “consumidor” vem definido no glossário do retro citado diploma legal e o alcance de “capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado” vem expressamente disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 50 da Lei n.º 3/2018 (Lei que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao Sector Empresarial do Estado).

[6] “Comercio electrónico” é, nos termos definidos no respectivo glossário, actividade económica ao abrigo da qual uma pessoa oferece ou garante através de um meio electrónico, a prestação de bens e/ou serviços, merecendo, ainda realce que “meios electrónicos” são todos os meios tecnológicos usados para a obtenção de dados no formato analógico ou digital, seu processamento, armazenamento, transmissão, bem como a sua apresentação.

[7] A mesma Lei, como forma de proteger o consumidor nas relações emergentes no mundo digital, plasma o direito do consumidor a livre resolução do contrato, concedendo ao consumidor a faculdade de cancelar a transacção (compra de bens ou benefício de serviços pela internet) num período de 14 dias úteis após da recepção dos bens ou serviços, se tais contratos não estiverem em consonância com as obrigatórias normas conducentes ao dever que os fornecedores possuem de colocar o consumidor clara e suficientemente informado sobre todos os aspectos fulcrais inerentes quer à empresa quer ao negócio que lhe dá causa. Cônscio da complexidade do manuseamento dos meios tecnológicos/digitais, a Lei sobre a qual se detém as presentes sílabas, estatui ainda que o empresário comercial deve fornecer ao consumidor um mecanismo seguro de pagamento e informação acerca do nível de segurança que o referido mecanismo confere (n.º 2 do artigo 45), sendo que aquele empresário é responsável por quaisquer danos sofridos pelo consumidor devido a falta de cumprimento do disposto no mencionado artigo.

[8] A Lei das Telecomunicações determina, num capítulo cuja epígrafe é “Qualidade do Serviço e Protecção do Consumidor”, que os operadores de telecomunicações devem adoptar as medidas necessárias para garantir a segurança e a integridade do funcionamento das respectivas redes e serviços e assegurar sempre que possível alternativas para a sua disponibilidade em situações de emergência e de casos fortuitos ou de força maior (art. 42 da Lei das Telecomunicações). É comum, no âmbito do uso dos serviços telemáticos, verificar-se a ocorrência de situações lesivas aos direitos do consumidor, sem que estes sejam ressarcidos dos prejuízos que lhes são causados, com o recurso ao leviano argumento de caso de força maior. A Lei das Telecomunicações, ciente desse argumento muitas vezes usado pelas empresas de telefonia móvel, visando conferir segurança e integridade das redes e disponibilidade dos serviços, estabeleceu no artigo precedentemente citado, a obrigação daquelas empresas garantirem que todos os meios destinados a estabelecer segurança para o consumidor sejam observados, sob pena de aquelas empresas incorrerem no dever de ressarcir os consumidores pelos prejuízos que os causam (arts. 562, 564 e 566 do Código Civil), devido, muitas vezes a negligência patente nas suas acções/omissões, negligência essa que é, pelas mesmas empresas, escamoteada e camuflada com recurso ao argumento de ocorrência de caso fortuito ou força maior, quando, na verdade, impunha-se às aludidas empresas, observar todos os deveres de cuidado para que o consumidor/cliente não saísse lesado.

[9] Salienta-se que, a despeito da predita Convenção ter sido adoptada em 2014, é curial realçar-se que só a partir da respectiva ratificação pela Assembleia da República, em 2019, por intermédio da Resolução n.º 5/2019, é que ela entrou em vigor em Moçambique, na medida em que, nos termos do n.º 1 do artigo 18 da Constituição da República, «os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique».

[10] Moçambique e países africanos não se alhearam a este fenómeno (a CUACPDP é sintomática disso, sendo perscrutável no preâmbulo desta Convenção que a necessidade da criação de um Quadro Jurídico sobre a Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais incorpora os compromissos existentes entre os Estados-membros da União Africana no plano sub-regional, regional, internacional, com vista a construção da Sociedade da Informação).