Com o desenvolvimento da sociedade da informação, possibilitou-se a compreensão dos dados pessoais de forma mais ampla. Forma essa que, em sistemas de big data, por exemplo, cria associações entre os dados disponíveis sobre um indivíduo e gera a obtenção de novos elementos informativos a partir do tratamento dos dados (SCHERTEL. 2014, p. 33). Assim, há a possibilidade de serem criados ou identificados padrões que não existem, por apofenia, pela quantidade de dados disponíveis que aumentam a possibilidade de identificação de relação entre elementos não conectados. (SANTANA, FIALHO, 2018). Ainda, há o chamado efeito incremental da coleta de dados que ocorre quando há um crescente número de informações privadas advindas de um indivíduo, o que torna difícil a dissociação dos dados do indivíduo em si, tornando a separação desses mais difícil com o passar do tempo (SANTANA, FIALHO, 2018).

Outrossim, há que se considerar o fenômeno data exhaust que consiste “nos rastros de informações deixados por toda e qualquer atividade online ou digital” (SANTANA, FIALHO, 2018), através de cookies, preferências de usuário, histórico, etc. Nessa perspectiva, “(…) entende-se fundamental a compreensão da disciplina de proteção de dados pessoais como meio de tutela da personalidade do cidadão, garantindo tanto a autonomia das suas escolhas como a sua proteção contra situações potencialmente discriminatórias” (SCHERTEL, 2014, p. 37).

Os fenômenos acima descritos evidenciam a potencialidade do dano sofrido por um indivíduo que tem dados de baixa qualidade, equivocados ou mesmo ultrapassados coletados para se tornar parte de seu perfil digital. Uma vez associados os dados coletados, é provável que não haja uma dissociação entre esses equívocos, o que atribui ao titular um perfil digital que não condiz com a realidade.

A partir dessas informações, discute-se a problemática da identidade digital, a qual se define pela junção de todo e qualquer rastro do indivíduo em ambiente online ou até mesmo físico, desde que posteriormente inserido em algum banco de dados online, bem como suas preferências de navegação, compras, cookies, etc., que quando interpretadas conjuntamente, formam um perfil para aquele titular. Nota-se que é através dessas informações que se identificará tal indivíduo e, por isso, entende-se como uma identidade digital paralela à física, a qual pode ou não ser condizente com a realidade da pessoa natural em questão.

A partir dessa identidade, o resultado desse processamento passa a ser vinculado à personalidade do titular. Portanto, somente o usuário pode determinar a extensão da utilização de seus dados, uma vez que o tratamento influencia diretamente em sua esfera privada, devendo este, portanto, ter controle sobre todas as etapas desde a coleta dos dados até sua eliminação. Nesse sentido, segundo Schertel:

“A informação pessoal difere de outras informações por possuir um vínculo objetivo com a pessoa, isto é, por revelar aspectos que lhe dizem respeito. Desse modo, resta claro que tais informações merecem tutela jurídica, uma vez que, por terem como objeto a própria pessoa, constituem um atributo de sua personalidade. Fundamental é perceber que tal tutela visa à proteção da pessoa e de sua personalidade e não dos dados per se.” (SCHERTEL, 2014, p.52)

Entretanto, muito embora haja a discussão em torno do princípio da autodeterminação informativa como direito do titular e dever do agente de tratamento, é mister ressaltar a falta de informação, principalmente no meio digital, dos titulares de dados que são objeto de tratamento. Não se pode esperar do cidadão médio que esse entenda o complexo processamento de dados e que, ao final, compreenda como e a que nível esse resultado informativo gerado sobre ele afeta seu dia a dia. Nesse sentido, leciona Marcelo Crespo:

O grande problema é que os algoritmos são processos complexos e obscuros, já que constantemente significam um segredo de negócios. E, por serem obscuros no sentido de não serem auditáveis (não porque seja tecnicamente impossível, mas, como dissemos, por ser economicamente um dado sigiloso), podem ser tendenciosos e preconceituosos. Quanto a isso, lembramos o episódio da Microsoft que, em março de 2016 apresentou ao mundo a conta no Twitter @TayandYou, que era de sua “chatbot” (programas computacionais que simulam um humano na conversação com outras pessoas). Neste caso, o perfil ficou menos de um dia no ar, tendo sido desativado em razão das mensagens racistas, homofóbicas, misóginas que o perfil passou a fazer após interagir com humanos e absorver deles os entendimentos preconceituosos e lamentáveis expressados publicamente naquela rede social.

(…) Os algoritmos que nos avaliam, deveriam, sob esta perspectiva, sujeitar-se aos critérios de avaliação justa que buscamos. Mas isso não é bem o que acontece, seja porque consideramos que eles são mais precisos do que realmente são, seja porque permitimos que sigam nos julgando obscuramente. É curioso como uma testemunha que não possa explicar seu pensamento acaba sendo alvo de desconfiança de um magistrado, mas, quando o assunto são algoritmos o sentimento parece ser um tanto diverso.

Portanto, ainda há um longo caminho a percorrer até que haja um real entendimento tanto sobre o modo de processamento de nossos dados como sobre a extensão do impacto, seja positivo ou negativo, que essas informações geradas causam na vida cotidiana do cidadão. O que interfere diretamente no princípio da autodeterminação afirmativa, a ser praticada pelo titular, mas que exige uma compreensão acima da média para que seja um direito praticável per se.

 

REFERÊNCIAS

CRESPO, Marcelo. Inteligência Artificial, Algoritmos e Decisões Injustas: É hora de revermos criticamente nosso papel em face da tecnologia. In: Migalhas. Publicado em: 31.10.2017. Disponível em: https://www.migalhas.com.br  Acesso em: 08.04.2019.

FERRARI, Bruno. Catherine O’Neill: “Algoritmos podem ajudar a reforçar estereótipos da sociedade”. In: Epoca. Publicado em: 10.01.2017. Disponível em https://epoca.globo.com Acesso em: 08.04.2019.

MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. Série IDP: linha de pesquisa acadêmica.

SANTANA, I. D. P. L; OLIVEIRA, Gabriel Fialho. Softwares de Combate e Prevenção ao Crime Sob a Perspectiva do Direito Brasileiro. RDTec: REVISTA DE DIREITO E AS NOVAS TECNOLOGIAS, São Paulo, v. 4, Número, p. 8.1-8.16, set./2019.