O mercado publicitário, focalizado, sobretudo, na personalização da comunicação com o consumidor, ancorou-se na captação e gerenciamento de dados pessoais para construção das estratégias de ampliação de vendas. Neste contexto, os dados pessoais, coletados por equipamentos eletrônicos de uso cotidiano do consumidor (como celulares, notebooks, relógios…), passaram a ser armazenados, lidos e formatados de modo a viabilizar a criação de um perfil exato de cada indivíduo (denominado perfilização) – medida que têm garantido uma comunicação mais assertiva entre as estratégias de marketing e o público alvo.
A tecnológica ferramenta publicitária, apesar de antiga[1], é, atualmente, a matéria-prima essencial para o fomento do consumo das massas. Hoje, qualquer indivíduo facilmente se depara com propagandas em seus celulares, pouco tempo depois de realizar a busca por determinado bem de consumo nos mecanismos de busca da internet, ou, mais chocante, após conversar sobre o assunto com um amigo.
É certo que informação gera poder, sobretudo para estas estratégias de marketing. As empresas, que em dado momento possuíam forte apelo para a publicidade de massa, perceberam que alimentar-se da fonte de informações dispostas na Big Data garantiria a produção de enormes vantagens competitivas: as grandes varejeiras, por exemplo, que detinham maiores e mais precisas informações do seu público alvo, possuíam maior aptidão para constituir uma comunicação precisa e cirúrgica com as emoções e anseios do seu público alvo, garantindo a ampliação de sua fatia de participação no mercado.
Ocorre que a liberdade conferida neste contexto de leitura e mapeamento digital de consumidores superou inúmeros limites éticos – e, por que não, jurídicos – que perpassavam a discussão. Seja em razão da manipulação eleitoral, percebida após os escândalos da Cambrigde Analytica, seja por conta dos mandos e desmandos das gigantes de tecnológica, é certo que as legislaturas perceberam que a cruzada dos grandes players do mercado pela alimentação e gerenciamento da Big Data deveria ser apreciada com parcimônia. A recente superação desta postura passiva ensejou, assim, a aprovação de inúmeros marcos gerais regulatórios para proteção de dados pessoais – como a GDPR, no cenário europeu, e a LGPD, no contexto brasileiro.
E como estes novos marcos legais regulam a publicidade comportamental?
Enquanto a GDPR prevê, expressamente, o fenômeno da perfilização, trazendo mecanismos que retomam o protagonismo do titular de dados na disposição de suas informações pessoais, a LGPD utiliza terminologias cambiantes: em um momento, utiliza a expressão “formação de perfil comportamental” e outra “definição de perfil de aspectos da personalidade”. Essa variação, contudo, não impede um trabalho dogmático de limitação dos contornos conceituais da perfilização”[2].
Neste sentido, é certo que ambas as normativas não aniquilam a publicidade comportamental, mas tentam alcançar um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e tecnológico do mercado e a proteção das garantias individuais dos consumidores. Sublinhe-se, aqui, tanto por meio da aplicação da exceção do consentimento (art. 7º, I da LGPD e art. 6º, a da GDPR), quanto pela hipótese do legítimo interesse (art. 7º, IX da LGPD e art. 6º, f da GDPR), é defensável a manutenção das atividades do marketing dirigido.
Em primeiro, é unânime a percepção de que o consentimento prévio, lúcido e esclarecido do titular dos dados servirá como fonte de licitude para a coleta e gerenciamento das informações pessoais para a perfilização.
Em segundo, já permeado por maior polêmica – sobretudo por conta da sua abstração conceitual –, o conceito de “legítimo interesse” também poderá fornecer uma ferramenta apta a assegurar a licitude no tratamento de dados.
Conforme o parecer n. 06/2014, do grupo de trabalho Artigo 29º para proteção de dados da União Europeia, o interesse no gerenciamento dos dados que seja (i) lícito (ou seja, que respeite os regramentos específicos da matéria); (ii) definido de forma suficientemente clara para permitir a realização do teste da ponderação em relação aos interesses e aos direitos fundamentais da pessoa em causa (ou seja, um tratamento suficientemente específico) e (iii) representado por um interesse real e atual (não especulativo), pavimentaria a licitude para o tratamento dos dados pessoais[3].
Em verdade, segundo o órgão consultivo europeu, “[…] os responsáveis pelo tratamento podem ter um interesse legítimo em conhecer as preferências dos respetivos clientes para personalizar melhor as suas ofertas e, em última análise, disponibilizar produtos e serviços que satisfaçam melhor as necessidades e os desejos dos clientes.”
Nesta perspectiva, o legítimo interesse pode ser um fundamento jurídico adequado para ser utilizado no tocante a algumas atividades de marketing, desde que sejam instituídas garantias adequadas (incluindo, sobretudo, um mecanismo viável para o exercício do direito de oposição, exclusão, informação e outros).
Ou seja, com o exercício da ponderação, o interesse legítimo poderá assegurar a regularidade no tratamento de dados pessoais de clientes para a formatação de estratégias de marketing dirigido e desenvolvimento de produtos e serviços, contudo, a precitada hipótese legislativa não viabilizará que os responsáveis pelo tratamento monitorem indevidamente as atividades dos respetivos clientes, combinando grandes volumes de dados, provenientes de diferentes fontes e recolhidos inicialmente noutros contextos e para outros fins, e criar – e, por exemplo, por intermédio de corretores de dados, também comercializar – perfis complexos das personalidades e das preferências dos clientes sem que estes tenham conhecimento e disponham de um mecanismo apto a permitir o direito de oposição.
Desta maneira, é nítido que os novos marcos regulatórios de proteção de dados pessoais não denotam o fim da publicidade comportamental, mas, pelo contrário, garantem uma mudança de paradigmas, propiciando um ambiente mais equilibrado e sadio para a promoção das garantias fundamentais e do desenvolvimento simbiótico econômico e tecnológico dos mercados globais.
[1] Já em 1967, foi reportado que a Association of Credit Bureaus of America detinha cerca de 110 milhões de dossiês de consumidores, emitindo quase 100 milhões de relatórios. (FINK, Varda N. Consumer Protection: Regulation and Liability of the Credit Reporting Industry. Notre Dame Law, v. 47, ano 1971, p. 1291)
[2] ZANATTA, Rafael. Perfilização, Discriminação e Direitos: do Código de Defesa do Consumidor à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. 2019, p. 07.
[3] Parecer 06/2014, Disponível em: https://www.gpdp.gov.mo/uploadfile/2015/0803/20150803050042662.pdf
Alex Mecabô
Advogado graduado pela Faculdade de Direito de
Curitiba, com intercâmbio de mobilidade pela Universidade de Coimbra.
MBA, em Gestão e Business Law, pela FGV. Especialista em Processo
Civil. Mestrando em Direito Civil, pela UFPR. Autor do livro "Direitos
Humanos Fundamentais e a Antropologia de Emoções: a Prática de
Revenge Porn", publicado pelo instituto Memória.